Gestão, não só falta de mão de obra: por que o SNS continua a tropeçar (e o que os estudos económicos dizem)
A discussão pública sobre a saúde em Portugal costuma centrar-se numa narrativa simples: “faltam médicos, faltam enfermeiros, falta mão de obra”. Essa explicação está parcialmente correta, há efetivamente tensões no recurso humano mas é incompleta. Um conjunto consistente de relatórios e estudos económicos recentes aponta para outro problema, tão ou mais decisivo: a gestão dos recursos disponíveis e a insuficiente fiscalização independente do uso do dinheiro público. A seguir, resumo as evidências e as principais recomendações que emergem das análises.
O diagnóstico: eficiência em queda e controlo fragmentado
Vários documentos de referência chegam à mesma conclusão: Portugal gasta menos do que muitos pares europeus em termos relativos e tem um sistema que, apesar dos progressos, enfrenta problemas de eficiência e de governação. O perfil da OCDE sobre Portugal identifica fragilidades estruturais no SNS e sublinha áreas em que a organização e as políticas poderiam melhorar. OECD+1
Um estudo do Banco de Portugal, que avaliou eficiência técnica de hospitais públicos entre 2012 e 2022 usando metodologias reconhecidas (DEA), documenta uma redução da eficiência média dos hospitais e identifica heterogeneidade entre unidades sinal de que há margem para ganhos com melhor organização interna, gestão clínica e partilha de boas práticas. Banco de Portugal
Paralelamente, auditorias e relatórios do Tribunal de Contas mostraram lacunas nos controlos durante a crise pandémica e em instrumentos de gasto extraordinário, apontando riscos de má alocação ou de falta de transparência quando as respostas são geridas de forma fragmentada. Isso não é um detalhe técnico: quando a governação falha, até mais dinheiro não garante melhores resultados. tcontas.pt+1
Porque gestão e fiscalização são centrais
- Recursos espalhados e duplicação: pagamentos diretos a privados (consultas, medicamentos) continuam a representar uma fatia elevada das despesas, o que pode refletir ineficiências no acesso público e na coordenação entre cuidados primários e secundários. O Banco de Portugal e outros estudos descrevem esta composição do gasto. Banco de Portugal+1
- Diferenças de desempenho entre hospitais: a existência de centros com melhores resultados indica que o problema não é apenas “falta de médicos” em termos absolutos, mas também como a capacidade é usada localmente. Melhor gestão clínica e processos podem elevar o desempenho médio. Banco de Portugal
- Controlo em tempos de crise: auditorias à gestão da pandemia revelaram que a urgência levou a procedimentos excecionais com supervisão insuficiente — um caso-tipo de como falta de fiscalização permite desperdício ou riscos de má gestão. tcontas.pt
O contexto macro e a necessidade de reformas estruturais
As instituições internacionais (FMI, Comissões europeias) reconhecem que Portugal melhorou a sua posição orçamental nos últimos anos, mas continuam a chamar a atenção para a qualidade do gasto público e para reformas estruturais que assegurem sustentabilidade e eficácia. Em linguagem simples: ter margem orçamental é positivo, mas é preciso gastar melhor. IMF+1
O Conselho das Finanças Públicas e relatórios nacionais sublinham a importância de aproveitar fundos (ex.: PRR) com reformas que aumentem a produtividade do setor público — não apenas investimentos em capacidade, mas transformações na gestão, digitalização e governança. CFP+1
Recomendações práticas (baseadas nas análises)
Com base nas evidências e sugestões das instituições, deixo um conjunto de medidas que devem estar no centro do debate público e das políticas para o SNS:
- Reforçar auditoria independente e transparência — mais recursos ao Tribunal de Contas/órgãos de fiscalização e publicação proativa de contratos, processos e métricas de desempenho. (Evidência: auditorias da pandemia e relatórios oficiais). tcontas.pt+1
- Medir e remunerar resultados — indicadores claros de produtividade clínica e de gestão, com benchmarking entre unidades e incentivos a melhorias (lições do estudo do Banco de Portugal sobre eficiência hospitalar). Banco de Portugal
- Reforçar a coordenação entre cuidados primários e hospitais para reduzir consultas e tratamentos desnecessários no setor mais caro; reduzir pagamentos diretos que mascaram falhas de acesso público. (Evidências: composição do gasto e recomendações da OCDE/Banco de Portugal). Banco de Portugal+1
- Apostar em digitalização com metas concretas (e-saúde, partilha de dados, telemedicina) para ganhos de eficiência e melhor gestão de listas de espera — uma recomendação recorrente em perfis internacionais. OECD
- Planeamento integrador de recursos humanos, que combine formação, redistribuição e medidas organizacionais (turnos, trabalho em equipa) em vez de depender apenas de contratação massiva ou de recorrer a “tarefeiros”. (Discussões recentes do ministério e relatórios setoriais). Expresso+1
Conclusão, mais gestão, mais fiscalização, melhores resultados
A narrativa de «só falta mão de obra» é sedutora porque é simples — e porque parte da realidade. Mas se a resposta política reduzir-se à contratação sem tocar na forma como o sistema é gerido e fiscalizado, matérias-primas (médicos, enfermeiros, equipamentos) continuarão a ser subaproveitadas. Os relatórios e estudos recentes convergem: há espaço para ganhos importantes através de melhor gestão, governação e avaliação independente. Aproveitar esses ganhos é a forma mais rápida e sustentável de melhorar resultados para os utentes e a melhor forma de garantir que o dinheiro público rende mais.
Fontes consultadas:
- OECD — Portugal: Country Health Profile 2023. OECD+1
- Banco de Portugal — Uma análise da eficiência hospitalar em Portugal (Revista de Estudos Económicos, 2024). Banco de Portugal
- Tribunal de Contas — relatórios e auditorias sobre gestão da pandemia e execução orçamental (2020–2024). tcontas.pt+1
- Conselho das Finanças Públicas — Comparação internacional do SNS / relatórios 2024–2025. CFP+1
- FMI / Article IV Staff Report (2024) e documentos da UE sobre sustentabilidade orçamental e qualidade do gasto. IMF+1